Tíquete Ano Novo: entrada franca

Por Lucas Carvalho

Um pequeno conto de réveillon, acompanhado por tirinhas e imagens com o tema do Ano Novo.


Poucos segundos haviam se passado, mas os fogos já começavam a demonstrar desgaste. Sem dúvida foram belos no início, mais pela expectativa da queima do que pelo espetáculo em si. Agora o contingente contínuo de barulho e luz não permitia registro à retina e as cores sobrepunham-se umas às outras, assemelhando-se a um descanso de tela em um computador.

Como tal, aquele foguetório parecia mais propício a ser vislumbrado com descaso do que com algum encantamento. Um fractal que parece intentar estender o tempo da virada pelo seu período de duração. Embora o fato fosse o de que o Ano Novo já havia chegado!

A transição entre os anos, em si, é tão espontaneamente encadeada que parece um desrespeito à simbologia da data.

Ocorre sem planejamento ou contagem. Simplesmente, em um segundo é um, n’outro é outro. Talvez se, numa casualidade única e de último instante, o hoje extinto horário de verão ainda estivesse em voga e acabasse à meia noite do dia 31, poderia haver alguma surpresa – desconcertante por expor o caráter ficcional da contagem do tempo:

10… 9… 8… 7… 6… 5… 4… 3… 2… 1… Opa. Ainda são 11 horas. Mais champagne!“.

De acordo com os técnicos, haveria 15 minutos ininterruptos de foguetório. Era de se imaginar o quanto eles tinham gasto pensando e planejando a respeito. Provavelmente uns bons três meses de preparação dedicados, de forma praticamente exclusiva, ao empreendimento.

História em quadrinhos “Contagem regressiva”, publicada originalmente em 1 de janeiro de 2013 – Desenho e texto: Lucas Carvalho

As formas de pomba deveriam aparecer de cinco em cinco minutos, para relembrar a paz e a prosperidade; fogos verdes e vermelhos se alternariam para tirar proveito das cores opostas, signos natalinos palpitariam, indiferentes ao seu atraso de seis dias e, em alguns minutos chave, fogos que faziam barulhos de maior intensidade seriam acionados para não permitir que a atenção das pessoas se dispersasse.

A situação final, no entanto, embora transparecesse um senso de organização milimétrica e cronometrada, era bem resumida pela frase dos comentaristas na televisão: “Um show de luzes e fogos”. Para ser sincero, quase nunca me fora possível discernir com exatidão as formas que dizem assumir essas luzes e fogos.

Mas era um show que duraria cerca de 15 minutos. Os mesmos comentaristas, portanto, não poderiam simplesmente dizer “um show de luzes e fogos” a cada cinco minutos para dar conta da transmissão completa do evento. Não. Eles sabiam: as pessoas costumam deixar a televisão ligada pelo tempo integral do programa da virada, a despeito do que dizem ou mostram.

No entanto, era uma espécie de questão de honra tornar aquilo tudo mais atrativo, posto que intimamente tinham a clara certeza de que os fogos sozinhos não eram capazes de dar conta de tanto tempo de exposição televisiva. 15 minutos de fama para o Ano Novo, uma vez a cada ano, e sempre parecia mais do que o necessário.

Tirinha da personagem “Prof.ª Vida”, publicada originalmente em 31 de dezembro de 2013 – Desenho e texto: Lucas Carvalho

Não. Eles escolheriam a dedo a música orquestral que melhor se adequasse à dramaticidade e pertinência da situação. Espalhariam – e fariam questão de ressaltar isso inúmeras vezes no ar – um número bom de câmeras em locais estratégicos que não deixariam passar batido um segundo qualquer da magia do espetáculo. E, ainda por cima, ensaiariam um discurso inspirado (ou, pelo menos, inspirado nos anos anteriores). O que, talvez, fosse a parte mais difícil.

Para os comentaristas, era ironicamente, uma prova de fogo enfrentar o foguetório da virada. Ter que discorrer sobre paz, prosperidade, felicidade, desejos bons e coisas boas, em geral, pelos 15 minutos ininterruptos dos fogos. E 15 minutos na televisão podem durar o equivalente a um ano completo. Paz e prosperidade não eram, definitivamente, os tipos de coisas com as quais estavam acostumados.

Uma pequena tragédia cairia bem, algum pequeno problema com algum dos fogos já bastaria…”, deve ter pensado, displicentemente, uma das jornalistas, enquanto dizia “um show de luzes e fogos”.

Feliz Renéveillon” – Montagem com fogos de artifício sobre a obra “Mistérios do Horizonte” (1955) de René Magritte, publicado originalmente como cartão de ano novo do Cozinha Gráfica em 31 de dezembro de 2016

Até porque o réveillon é sempre uma ocasião e tanto, em especial para as redes de televisão. Nunca as emissoras experimentam tamanha comunhão televisiva quanto no dia 31 de dezembro, à meia-noite. Todas exibindo – exclusivamente, é claro – os fogos de artifício de algum determinado lugar do país. Canal 12, fogos, canal 5, fogos, canal 6, fogos… Exceto, é claro, o canal de compras. O canal de compras já deveria estar dizendo que eu não aproveitei os fogos da melhor maneira por causa de algo que eu deveria ter comprado, que aumentaria sensivelmente minha sensibilidade ou que me permitiria registrar muito melhor o acontecimento e revê-lo quantas vezes quiser…

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Tirinha de ano novo dos personagens “Alberto e D. Irene”, publicada originalmente em 9 de janeiro de 2020 – Desenho: Vinicius Ribeiro. Texto: Lucas Carvalho

Estranho isso” – pensei, de repente, acordando do meu devaneio.

Suponho que seja comum que algumas pessoas pensem, das suas casas, em como seria estar no local dos fogos.

Mas lá estava eu, em plena praia em festa, pensando no que estaria se passando nos canais de televisão, enquanto baixava os olhos, evitando as luzes que pipocavam. Luzes por luzes, fossem do aparelho, ou do local físico, havia um espetáculo a parte quando se deslocava o foco de atenção aos espectadores.


A despeito dos sons explosivos, o local estava tomado por uma massiva imobilidade. Como estátuas, todas com as cabeças direcionadas ao céu, as pessoas assistiam aos fogos que se refletiam nas suas roupas brancas e em seus olhos. Abraçadas com alguém, sozinhas, de mãos dadas, experimentavam um silêncio contemplativo, como se avistassem, além da linha do horizonte do mar, promessas de futuro que chegariam logo logo em alguns barcos ao amanhecer.

Trajadas todas de branco, lembravam-me um estranho exército de médicos. E, imóveis, congeladas nas suas feições, também me pareciam loucas. Um exército de médicos e loucos…

Tirinha de ano novo dos personagens “Capitão e Marujo”, publicada originalmente em 31 de dezembro de 2018 – Desenho: Vinicius Ribeiro. Texto: Lucas Carvalho

No entanto, não chegava a ser muita loucura comparativamente. Fui tomado de assalto por visões dispersas ao redor do mundo.

Uma tradição em países germânicos que remonta aos povos célticos e romanos consiste em derramar metal (originalmente chumbo) derretido numa cumbuca no momento da virada e imediatamente resfriá-lo. A forma assumida pelo metal resfriado é usada para ler o fortuna do ano vindouro. Fotografia: Micha L. Rieser, Wikimedia Commons.

Pelo fuso horário, um austríaco poderia já estar acordando ao lado da sua cumbuca com metal incrustado, que fora jogado derretido no momento da virada – amuleto para prever a fortuna do ano que chega; alguma pessoa na Malásia não arrumaria a casa, na véspera, para que não correr o risco de tirar algo dela e trazer má sorte no ano vindouro (aqui, provavelmente muitos teriam arrumado suas casas para começar o ano organizadamente).

Na Colômbia, é possível que alguém estivesse, naquele exato momento, preparando sua mala para dar, com ela, voltas a redor do quarteirão, quando fosse o horário adequado. Sem contar aqueles para os quais não havia Ano Novo, já que não seguiam o Calendário Cristão.

Aos poucos, um burburinho começou a surgir no meio da multidão que parecia esparsamente se despertar de um transe. A uma curta distância de mim, pude ouvir uma menininha falar, extasiada, enquanto apontava para o céu ainda tomado por cores e formas:

– Olha. Um coração!

Mas alguém que estava carregando-a nos ombros retrucou:

– Não é um coração, é uma águia!

A menininha, então, abaixou o braço e nada mais disse. Do lado oposto, um rapaz gritou uma promessa, em meio a um grupo de amigos, que deliberadamente sabia que não cumpriria, visto a alegria irônica que estampava no rosto. Mais à frente, uma mulher prometeu-se algo vistosamente inatingível, empertigou-se e se retirou, executivamente. Um casal próximo prometeu um ao outro e se beijaram…

Tirinha de ano novo do Cozinha Gráfica, publicada originalmente em 11 de janeiro de 2018 – Desenho: Vinicius Ribeiro. Texto: Lucas Carvalho

Pouco a pouco, o ano novo ia tomando forma em consonância distinta às formas a piscar no céu, avisando de que chegara para ficar. E eu já podia imaginar que, até março, não teria me acostumado com o numeral e ainda escreveria o ano passado nas datas de documentos, mas que, já em abril, eu teria as primeiras de muitas conversas em que diria que o ano estaria passando rápido demais.

Rápido demais… Mas isso era só porque os anos novos são acumulativos.

Para Vitória, Esperança e Claudiscleisson Neto (que teve a infeliz sorte de ter um avô muito amado), os três bebês que logo estariam nos noticiários como tendo sido os primeiros a nascerem no dia primeiro, aquele Ano Novo passaria quase despercebidamente, sem senso de rapidez ou lentidão.

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Tirinha de ano novo do Cozinha Gráfica, publicada originalmente em 3 de janeiro de 2019 – Desenho: Vinicius Ribeiro. Texto: Lucas Carvalho

O ano já nascia, para eles, como fragmento de memória. Por sorte, seus pais guardariam os recortes de notícias, arquivo de vídeo das reportagens, bem como os primeiros sapatinhos e demais acessórios….

Após 17 minutos, dois minutos a mais do que o previsto e, justamente quando os fogos já pareciam fazer parte do ruído da paisagem, eles cessaram e um último morreu de encontro ao próprio reflexo na água. Uns três segundos depois, dois outros foram soltos, para deleite de um dos técnicos que planejara aquele pequeno bis entusiasticamente, como um elemento surpresa que desmentiria o suposto fim da festa.

Entretanto, quando as luzes desses dois finalmente dispersaram, uma enorme calmaria sobrepujou o burburinho dos espectadores e, com ela, foi-se instaurando uma tênue sensação de vazio. O técnico fora o primeiro a senti-la. Era sempre um dos que tinham mais expectativa para o Ano Novo. Meses de preparação, os 15 a 17 minutos de pirotecnia, um pequeno bis e o vazio incômodo após a conclusão do serviço.

Esse vazio, aos poucos, foi se disseminando pelo ambiente. E logo se transformaria numa inquietude que, após a catarse dos fogos, dá nova sensibilidade à existência: era hora de definitivamente fazer algo do ano, vivê-lo. Mas fazer o quê, vivê-lo como exatamente?


Perguntas simples e complexas. Havia um misto de urgência de alguma definição e uma necessidade de desapego, deixar que as coisas continuassem a seguir seus caminhos naturalmente, ao mesmo tempo em que a ocasião impelia para um marco, para alguma atitude.

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Tirinha de ano novo do Cozinha Gráfica, publicada originalmente em 10 de janeiro de 2022 – Desenho: Vinicius Ribeiro. Texto: Lucas Carvalho

Pelo menos, aquela noite já estava garantida – pensei. A ceia e os fogos haviam se passado, era chegada a hora de dormir. Quando acordasse, talvez a claridade da manhã de um novo dia efetivamente estabelecesse um senso de responsabilidade pessoal para com o novo ano.

Fui à beira da água, contemplei, por um momento, a infinidade escura do oceano na qual ainda pareciam pipocar reflexos dos fogos, sobrepondo, ao negrume salpicado pela luz da lua, a lembrança recente das luzes coloridas. Luzes do Ano Novo já passadas, como quando se fecha os olhos e pontos luminosos explodem num espaço intangível.

Molhei os pés e comecei a me retirar do local. No entanto, a curiosa sensação de imprescindibilidade de tomar alguma medida para inaugurar o ano não me abandonara. Parecia necessário estabelecer alguma noção assertiva, uma metodologia de iniciação, algo novo para o Ano Novo. Com esse sentimento presente de maneira difusa, fui caminhando até que, em determinado momento, passei pela menina que havia visto um coração nos fogos e sido repreendida. Sentada na areia, sozinha, com cara emburrada, ela dizia:

– Mas que era um coração, era!

A cena era comovente. Pequenina defronte a inúmeras pernas brancas, parecia estar num ambiente particular, que mesclava enclausuramento e plenitude. Vê-la ali dissolveu o restante do espaço que a circundava.

Por uma fração de segundo, eu quis lhe dizer alguma coisa, reafirmar que o que ela vira realmente fora um coração. Mas me ocorreu que não era necessário. Por si própria, ela já sabia disso. Era óbvio. E, assim como era óbvio para ela, tornou-se também óbvio para mim. Sozinha, a despeito de tudo e de todos, de vozes mais sensatas ou não, da relevância da situação que a preocupava, aquela era uma ótima forma de começar o Ano Novo: reafirmando suas convicções. Por mais mínimas, instáveis ou subjetivas que fossem...

Feliz Ano Novo!

Texto originalmente escrito e publicado em dezembro de 2010


Lucas Carvalho é artista, professor universitário e criador do Cozinha Gráfica

Publicado por Cozinha Gráfica

Pesquisa e produção artística ampliada na web.

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