Entre o ser e não ser

Texto por Lucas Carvalho
Ilustrações de Vinicius Ribeiro


Existe uma linha muito delicada entre características e traços comportamentais que são nossos e que devemos abraçar e o fato de que somos seres em construção e, portanto, podemos e devemos mudar.

Na sociedade atual, cansativamente binária, essa questão, que deveria ser uma questão de mediação, acaba virando uma questão de cisão: com seus respectivos partidários, que evidentemente procuram criar um corpo de pensamento mais simplificado e atrativo para as pessoas de modo geral.

De um lado, a corrente dos que defendem que devemos absolutamente assumir e amar todas as nossas idiossincrasias, como se fossem traços sacros, essenciais e inalienáveis do nosso ser.

Feto II” (2019) – Vinicius Ribeiro

Nessa narrativa, a sociedade e seus valores estão a todo tempo nos empurrando para uma desconexão com um eu verdadeiro, que precisa ser mutilado e moldado para se adequar ao sistema. O caminho apregoado demanda remover as influências externas e se reconectar consigo.

Contudo, não é incomum que essa suposta reconexão, em pouco tempo, torne-se o mandamento do amor próprio acrítico, que reproduz o ideal da divinização no eu: eu sou o que sou e ponto final. Amem-me assim. E que o mundo se adapte e corresponda, com o devido conforto, a essa minha forma de ser.

Actias Luna” (2018) – Vinicius Ribeiro

Do outro lado, a corrente dos que defendem a permanente mudança parece crer que só se existe quando se coloca para si um desafio capaz de reestruturar a identidade. O mandamento é sair da zona de conforto e reafirmar, a cada momento, a disposição a se tornar outro.

Enquanto a primeira narrativa parte de uma noção mais espiritualizada (mesmo quando quer se apoiar numa natureza do eu) acerca da própria essência, essa outra narrativa acredita, de fato, na natureza da vida de selva, do esforço e competição: devemos estar dispostos a mudar, ressignificarmo-nos, reinventarmo-nos, senão invariavelmente ficaremos para trás na ordem natural das coisas.

O ser que se acomoda, que se estagna, que se satisfaz consigo mesmo tal como se encontra ironicamente já não teria mais condições de ser, tendo em vista que o ser nunca é, mas está.

Entre a sacralização intemporal do indivíduo e a competitiva natureza da vida, os polos, seus gurus e seguidores debatem e brigam a cada detalhe: devemos amar nosso corpo como é ou nunca estar satisfeito com a balança e a definição dos músculos? Devemos comer o que nos apetece ou nos abrir a novas dietas? Devemos nos conformar com um traço comportamental como a timidez, ou devemos confrontá-lo e nos expor ao desconforto sempre que possível?

Embora talvez queiramos nos inclinar a algum polo, a resposta é evidentemente muito menos simples.

Feto I” (2019) – Vinicius Ribeiro

Tratar-se como uma espécie de obra acabada, plena, alheia a mudança, independentemente de qualquer traço que porventura possar ser visto como negativo, é uma receita para empáfia e a própria despotencialização.

Todavia, assumir a eterna roda de mudanças como figura máxima do existir também significa uma receita para perda da clareza de valores e princípios e, consequentemente, alienação da própria identidade.

Entre o ser e o deixar de ser, o mais difícil é cultivar a sabedoria de uma verdadeiramente socrática busca pelo autoconhecimento, para não se deixar se enganar pelo narcisismo disfarçado de amor próprio, nem se corromper pela também narcísica insatisfação consigo e desejo de ser outro.

A vida, espaço de contradições, parece exigir as duas coisas: uma essencialidade identitária de valores e ações correspondentes, e um desejo de encontrar na mudança novas perspectivas, que nos tirem da inércia e sejam igualmente constitutivas do que somos.

Bem aventurados aqueles que sabem – ou aprendem – a navegar por essas duas correntezas de incertezas, sem se perder em nenhuma delas, antes sabendo se encontrar tanto quanto se descobrir.


Lucas Carvalho é artista, professor universitário, criador e roteirista do Cozinha Gráfica

Vinicius Ribeiro é artista, professor e cocriador dos universo de quadrinhos do Cozinha Gráfica

Publicado por Cozinha Gráfica

Pesquisa e produção artística ampliada na web.

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